sábado, 15 de novembro de 2008

Um dia destes ainda volta



S.Miguel tem um desenho bastante feminino, visto do ar, maior porta de entrada.
Na sua estreita cinta, Ponta Delgada de um lado e Ribeira Grande do outro, polvilham a ilha de pequenas casas, que do alto parecem botões de hortênsias.
Num dos topos, a lagoa das setes cidades apresenta-se como o olhar da ilha, um olho de cada cor, espelhando as permanentes nuvens, entrecortadas aqui e ali, por um teimoso raio de sol que anuncia deitar-se ao fundo das águas de Mosteiros.
Do ventre emanam fumos que o centro da terra oferece, numa mesquela de cheiros e de temperaturas, medicinais, ou simplesmente misteriosas.

Em quase todos os recantos da ilha, há surpreendentes e mutantes visões do paraíso natural que incorrem em sensações díspares consoante o momento e a companhia.

Do Sol guardo o calor reflectido no mar ou o brilho ofuscante da sua imagem numa qualquer lagoa.
Das cinzentas nuvens as descargas tempestuosas e belas dos raios dos deuses que iluminam a noite mas atormentam as almas. Espectáculo único, mas repetido nos vários quadrantes.

Descendo, narro os cheiros, sulfurosos das furnas e da ribeira quente, aos floridos dos campos de chã, e intensos dos portos de pesca, ou ainda levemente doces ou brutalmente picantes das bocas de fogão das hortênsias de gente espalhada pelas ancestrais povoações, quase todas ribeirinhas.

O gosto do alho e do picante atirado aos tremoços, ou misturado no afonsino molho das cracas. O ácido do limão que banha as lapas amanteigadas. O paladar que perdura das postas de cherne gralhada na “Borda de Água”, a carne vermelha e batida que os bifes ali têm, fritados num alho bem português ou em limão galego.
O cozido do centro da terra. O picante chouriço, o estranho pé de torresmo, as morcelas que restam da matança do porco, o suco da sopa de fervedouro, ou mesmo os recheios do assado, são lembranças que me despertam sensações que só consigo descrever com os olhos fechados.

As pessoas descrevem-se em mágoas. Histórias colectivas de dramas individuais.
Mas também em abraços e solidariedade.
Assimetrias, mas que se esvaem, sob o artificio explosivo do fogo que aceita o ano novo e mata o velho, numa qualquer calçada da ilha, ou no pátio festivo de alguns.
As mesmas gentes e emoções que atiram balões de água aos carnavalescos foliões. A guerra das limas.
Ou aqueles que em meditação e silêncio percorrem o perímetro da ilha, cantando aos santos e a Deus, em cada uma das moradas que se lhes atribui, pisando os pés e o corpo como penitência.
Os mesmos que gritam nas ruas apregoando a distribuição da carne que ajuda à comemoração do espírito, que aqui é santo.
Os hospitaleiros anónimos que entopem a cidade, recebendo dos cantos do mundo, os que no Senhor Santo Cristo, procuram ou agradecem os milagres da vida e a tenacidade e esforço da distância.

Também as pessoas mudam, como as paisagens, as cores e o sentido da vida.
Mendigam migalhas e ajudas, que misturam no álcool e nas drogas na busca de visões mais límpidas das negras vidas que carregam.
Tratam as relações como puzzles cujas peças tentam encaixar ou mudar em função dos estados de espírito, ou da falta deles.
Mas esquecem as mágoas se se lhes bate á porta um folião, ou um parceiro braçal para enfrentar as intempéries da vida ou da natureza.

E há ainda as pequenas histórias de cada um, como a minha, que em tão pouco tempo absorveu cada um dos factos e dos sentimentos que abraçam cada micaelense.

Aterrei com a mala cheia de amor. E com frutos desse amor.
Ri. Chorei. Gritei. Pensei.
Trouxe orgasmos instantâneos, ou camas partidas pela sede do amor.
Trouxe partilha e comunhão, que repetir só intensifica.
Trouxe raiva e fúria, tristeza e melancolia. Injustiça.
Trouxe um filho que o amor me deu de fruto e que não soube amadurecer na arvore que o gerou.
Trouxe, graças a Deus, o arrependimento e a penitência.
E guardo-lhe saudade.
Texto do senhor que voltará em breve, espero eu e outros mais ainda, ao sítio do costume, de seu nome Paulo Santos.

2 comentários:

Um pedaço de azul... um BloGui diferente disse...

Muito bom o texto... mesmo.
Mas eu queria era novidades vossas... tuas minha querida amiga... tenho-te no pensamento sempre... mas porque tens 91? raios.

Um pedaço de azul... um BloGui diferente disse...

... e coriscos...